Manaus (AM) – O lockdown parcial é ditado pela fome em Manaus. Há uma semana, famílias inteiras pedem por ajuda nos sinais de trânsito em todas as zonas da cidade. Permanecem nas ruas mesmo sob a chuva intensa dos últimos dias na capital amazonense que contribuiu para que a maioria da população respeitasse as medidas mais restritivas de isolamento.
Pedintes se concentram nas lotéricas e agências da Caixa Econômica Federal, instituições responsáveis pelo pagamento da última parcela do auxílio emergencial. Mas eles podem ser vistos também nas farmácias e nos supermercados, uns dos poucos locais autorizados a funcionar pelo decreto estadual.
“Ainda não comi nada hoje. Nem eu, nem minha filha. Ela e minha sobrinha ficam esperando a gente voltar para poder comer”, confidencia Domelis Paola Villaruez, 25, à porta de uma farmácia no bairro Cachoeirinha, na zona sul de Manaus.
Desde às 9 horas, elas esperam em pé por alguns trocados dos clientes. Às 14h20, ela e a irmã, Yanelys Del Valle, 20, diziam que queriam juntar a quantia de R$ 30 para poder pagar a diária do local onde estão alojadas, no Beco Tarumã, e comer com o resto do dinheiro. “R$ 20 é para pagar a diária e R$ 10 para comprar um pão”, diz Domelis.

A triste realidade das irmãs venezuelanas que chegaram de Isla Margarita há dois meses é a mesma partilhada pela família de José Gregório Fernandez Cortez, 33. Ele veio para Manaus em outubro de 2020 e conseguiu um trabalho como carregador de cargas para lojas do centro da cidade. Há um mês, a mulher Nareth Guadalupe Castellar, 28, chegou com as duas filhas, de 10 e 7 anos, de Puerto La Cruz. Foi o que o salvou.
“Tive um AVC no início de janeiro. Fiquei dez dias internado no Hospital João Lúcio. O trabalho, que já estava difícil antes, ficou pior com o fechamento. E agora tenho esse problema para movimentar o lado direito do corpo: uma parte paralisou”, conta, enquanto tenta abrir, com dificuldade, o zíper da carteira com os documentos na esquina da Avenida Sete de Setembro com Visconde de Porto Alegre, no centro de Manaus. Apesar de ter conseguido um CPF, José Gregório ficou de fora das listas de benefícios para o pagamento das ajudas dos governos federal e estadual.
Na quinta-feira (28), o governo do Amazonas anunciou a liberação do auxílio financeiro emergencial no valor de R$ 600 para famílias em situação de extrema pobreza a partir de fevereiro, divididos em três parcelas. Serão contempladas famílias com quatro ou mais membros, chefiadas por uma pessoa maior de 18 anos, e que já estavam inseridas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família. A expectativa é atingir 100 mil pessoas.
Já a Prefeitura de Manaus prevê o valor de R$ 200 para 40 mil famílias de baixa renda do município a partir de fevereiro. O programa será destinado às famílias com crianças de 0 a 36 meses ou idosos acima de 60 anos, tendo como base o Cadastro Único (CadÚnico), de dezembro de 2020.
Na falta do auxílio emergencial federal, negado pelo presidente Jair Bolsonaro, os governos estaduais e municipais precisam criar suas próprias estratégias caso precisem adotar medidas de isolamento mais restrito para enfrentar a pandemia do novo coronavírus, como o lockdown parcial do Amazonas. Uma das críticas do decreto de sexta-feira passada (22) foi por ter sido adotado sem qualquer medida que estimule, efetivamente, a população a cumprir as regras. O que se viu foram cenas de grande aglomerações dos manauaras com medo de desabastecimento nos supermercados. E agora a fome em Manaus é quem dá as caras.
Nesta sexta-feira (29), o governador Wilson Lima (PSC) anunciou a prorrogação do isolamento mais restrito que restringe a circulação de pessoas por 24 horas até 7 de fevereiro para tentar controlar o agravamento da Covid-19 no estado do Amazonas. Houve algumas alterações no decreto. O funcionamento das feiras livres será agora de 4h às 15h, e serviços de delivery para materiais elétricos e mecânicos estão liberados. O novo decreto também suspende o ponto facultativo do carnaval e autoriza o retorno das aulas da rede estadual no formato online.
A rede de mulheres que se apóiam

“Tento controlar minha ansiedade por conta da responsabilidade que tenho com a minha família, mas teve um dia que eu saí a esmo, por aí, pensando no que ia fazer. Tinha acabado o gás, não tinha o que comer”, afirma a radialista e fotógrafa, Drihelly Maria de Cunha Lima, de 33 anos. “Sou do tipo que faço de tudo, trabalho com qualquer coisa, mas como a gente vai burlar a lei? A lei é feita só para os pobres.”
Há 11 meses, ela e a companheira, Realene Freitas de Oliveira, 46, dividem uma quitinete no bairro Novo Aleixo, na zona leste da capital do Amazonas. Ela tinha acabado de conseguir um emprego de carteira assinada como auxiliar de produção em uma fábrica no Distrito Industrial, bairro que abriga boa parte das indústrias da Zona Franca. Mas o decreto do governo de Wilson Lima de suspender as atividades não essenciais, em março de 2020, fez a empresa voltar atrás. Nenhuma das duas conseguiu receber qualquer parcela do auxílio emergencial do governo federal.
Natural de Itacoatiara, município a 176 quilômetros de Manaus, Raelene também havia conseguido passar em uma entrevista de emprego em uma loja, mas não chegou a ser contratada. Ela chegou em Manaus com os filhos, Júlia de Oliveira Machado, 12, e João Antônio de Oliveira Machado, 18, em março. Graças ao cuidado que mantêm, nenhum deles pegou Covid-19. Nem mesmo os vizinhos dos outros dois apartamentos, que são venezuelanos.
“A gente se cuida, mantemos distância, a máscara quando estamos aqui no corredor. As famílias aqui estão todas desempregadas, devendo o aluguel do mês, mas estamos firmes. Sei que a pessoa que aluga aqui depende disso também, mas ele conseguiu alguns dias a mais”, conta.
Graças ao Fórum Permanente de Mulheres de Manaus e ao Movimento das Mulheres Negras da Floresta – Dandara, Drihelly Maria recebeu cesta básica em 2020 para ajudar na alimentação. A última veio em dezembro. “Carne, frango, a gente nem conta mais. Quando aparece algo, vamos para a cartela de ovo. Quando recebia algo mais, fazia bolo para vender”, conta.
Criada pelos avós, Drihelly conta que só teve contato com a mãe já adolescente, mas não se adaptou por conta do padrasto, de quem sofreu abuso. Sem mágoas da família, ela fala com carinho do irmão, diagnosticado com transtorno do espectro de autismo. “Para ele, esse período é mais difícil do que para nós. Ele não entende o perigo do vírus, não consegue ficar trancado muito tempo em casa, às vezes foge”, explica.
Agora, ela e a companheira correm atrás do laudo de diagnóstico de João Antônio, 18. Ele e a irmã já estão matriculados em Manaus e acompanharam, com dificuldade, as aulas virtuais iniciadas em meados do ano passado, dividindo a internet com os vizinhos. A mãe, Raelene, acompanha as tarefas e foi à escola buscar as cópias das lições para ajudar. A preocupação, no entanto, está com os pais e o irmão, que estão com Covid-19 em Itacoatiara. “Ela fica com o coração partido, mas não quero que ela vá porque temos uma conhecida que foi cuidar dos pais e faleceu. Ela ainda tem os filhos que precisam dela”, conta Drihelly.
Quilombo São Benedito se fechou para evitar a Covid-19

No quilombo urbano São Benedito, bairro Praça 14, na zona sul de Manaus, a rede de mulheres da Associação Crioulas do Quilombo do Barranco de São Benedito se organiza para se proteger e se ajudar mutuamente, além de auxiliar a comunidade do entorno.
“Resolvemos fechar a comunidade nas últimas semanas. Ninguém entra ou sai. Temos muitos idosos e grupos de risco. Perdemos duas pessoas nos últimos 20 dias e nossa prima querida há mais de um mês. Ela foi precursora da associação e morava em outro Estado. Ela veio para cuidar de uma tia que teve derrame, pegou Covid-19 e faleceu”, conta Rafaela Fonseca da Silva, membro fundadora e atual primeira tesoureira da associação.
Durante a segunda onda, elas conseguiram a doação de dez cestas básicas do movimento Banzeiro Feminino e outras 20 de um amigo que é maçom. “Temos lista de pessoas à espera. Atualmente são 150 pessoas. A maioria trabalha na informalidade, colocava banca de comida, de café da manhã, tem filhos, idosos que precisam de fralda. Nem todos conseguiram receber o auxílio emergencial. Tem gente que está esperando essa ajuda”, explica Rafaela, que também é considerada grupo de risco. “Estou mobilizando e ajudando pelo telefone, tudo em home office. Outras duas coordenadoras nossas estão responsáveis pelo acolhimento das doações”, explica.
O respeito ao lockdown parcial

No giro que a reportagem da Amazônia Real fez pela capital, que há uma semana vive o lockdown parcial, a luta pela vida é também pela sobrevivência. Muitos dos que estão e permanecem nas ruas são pedintes, vendedores ambulantes, pessoas que se arriscam para obter qualquer ajuda e consigam aliviar o desespero da fome.
Nas principais vias da cidade, apenas o fluxo de carros, longe dos habituais congestionamentos, mantém a movimentação nas ruas. Os supermercados, que registraram aglomeração de pessoas há uma semana, quando um áudio circulou nas redes sociais com falsa notícia de desabastecimento, registraram baixo fluxo nas zonas leste, sul e centro-sul de Manaus.
Embora com grupos de pessoas próximas umas das outras nos terminais e paradas de ônibus, principalmente de vendedores ambulantes, dentro do transporte coletivo, não foram vistas cenas de lotação.
Em poucos locais, como na rua do Fuxico, região comercial do bairro Jorge Teixeira que concentra distribuidoras de produtos alimentícios e estivas na Zona Leste, caminhões com grupos de três ou quatro trabalhadores dentro da caçamba fechada e carregadores sem máscaras trabalhavam normalmente. As distribuidoras locais são responsáveis pela maior parte do abastecimento de pequenos e médios estabelecimentos na capital.
Loja de móveis e de baterias para carro aproveitaram o movimento na região para funcionar sem permissão, de acordo com o decreto em vigor. Às escondidas, essas lojas abriram metade da porta e mantiveram a luz apagada.

(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Reportagem: Steffanie Schmidt /Agência Amazônia Real
Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”