
Redação – Depois da morte da bisavó de Lisandra Uwaireudo, 20, as mulheres de sua aldeia se recolheram por cinco meses em uma cabana para cumprir os ritos fúnebres do povo Bororo.
Juntas, elas preparavam peixes, traçavam riscos decorativos na pele com pedaços de vidro e teciam tapetes de fibras de babaçu, usados para forrar o chão durante as danças guiadas pelos seus cânticos.
Há cinco anos, Lisandra seria impedida de se unir ao grupo: à época, ainda não se apresentava como mulher, embora, desde a infância, sentisse incompatibilidade com o gênero masculino que lhe foi atribuído ao nascer.
Lisa, como é apelidada, enfrentou falas preconceituosas quando se assumiu trans, algumas vindas da própria mãe, confusa em relação à identidade da filha. A jovem, no entanto, acredita que os episódios foram motivados mais pela falta de informação do que pela rejeição.
Hoje, sente-se acolhida, apesar de ainda passar por eventuais situações de desrespeito, e enxerga como símbolo máximo dessa aceitação o convite para participar da cerimônia ao lado de outras mulheres.
“Nosso povo, em geral, respeita as pessoas trans. Hoje, todo mundo da família me aceita, principalmente minha avó. Ela fala que sempre soube que eu era mulher”, conta a indígena da aldeia Tadarimana, no Mato Grosso.
A percepção é a mesma de Majur Harachell Traytowu, 33, primeira “cacica” trans do Brasil e agente de saúde, também do povo Bororo, que vive na aldeia Apido Paru.
“Dentro da comunidade, nunca houve preconceito. O preconceito vem de fora. Quando comecei a transição, as pessoas daqui ficaram admiradas. Estavam ansiosas para ver o resultado, como meu corpo reagiria”, relata a indígena, que iniciou a terapia hormonal na pandemia.

Nas visitas à cidade mais próxima, Rondonópolis (MT), Majur enfrenta outro tipo de reação. “Só sinto medo quando saio da aldeia. Quando vou fazer compras ou participar de algum evento fora, sempre noto olhares diferentes, de ódio mesmo. É assustador.”
Vinda de uma linhagem de lideranças indígenas, Majur cresceu vendo seu pai, hoje com 83 anos, atuando como chefe de cultura da comunidade. O patriarca conduz cantos e rituais e domina o conhecimento de remédios, ervas tradicionais e táticas de caça e pesca.
Ao longo da vida, tios de Majur se revezaram no posto de cacique. Para ela, esse histórico familiar contribuiu para que fosse respeitada, tornando-se “cacica” em 2019, quando já se apresentava socialmente como mulher.
Transexualidade não é algo novo para os Bororo, conta ela. “No passado, já existiam homens e mulheres trans em nosso povo. Minha mãe me entendeu desde o começo, porque já tinha presenciado isso.”
Segundo Kiga Bóe, que cursa doutorado em antropologia na Universidade Federal de Goiás (UFG), diferentes culturas indígenas consideram a existência de mais de dois gêneros. Por exemplo, para os zapotecas, da região de Oaxaca, no sul do México, há três categorias: feminino, masculino e “muxes”.
Reconhecido desde os tempos pré-hispânicos, o terceiro gênero inclui pessoas designadas como homens no nascimento, mas que se vestem como mulheres e assumem papéis tradicionalmente femininos.
Além disso, povos nativos norte-americanos registravam a presença de indivíduos andróginos desde antes da chegada dos colonizadores ingleses. Os “two-spirit”, termo contemporâneo usado para defini-los, incorporariam tanto o espírito feminino quanto o masculino, nessa filosofia.
Também original do povo Bororo, da aldeia Meruri, Kiga iniciou sua transição de gênero aos 20 anos. Em 2019, criou o Coletivo Tybyra, que reúne a comunidade LGBTQIA+ indígena com o objetivo de promover sua articulação política.
Hoje, a mato-grossense de 28 anos classifica sua identidade como “um meio entre homem e mulher”. Diferentemente de sua prima, Lisa, não recebeu tanto acolhimento a princípio, o que atribui a um histórico de colonização.
“Nasci em uma aldeia que foi bastante catequizada. Minha mãe e as pessoas mais velhas passaram por esse processo, então é mais fácil dialogar com os jovens. Na aldeia da Lisa, essa influência foi menor.”
Diante das dificuldades para poder ser ela mesma, os estudos se tornaram seu “lugar no mundo” —vivência que se assemelha à de Lilith Cairú, 26. A mulher trans do povo wapichana, de Roraima, faz graduação em ciências biológicas na Universidade Federal de Roraima (UFRR).
A jovem viveu em uma aldeia com a mãe durante os primeiros anos de vida, mudando-se depois para a capital do estado. Na vida adulta, a falta de estabilidade financeira e a dificuldade para encontrar trabalho a fizeram trancar o curso por dois anos.

O contato que tem com seu povo se dá por meio de associações indígenas urbanas. “Essas associações são importantes para mudar a visão de que indígenas vivem sempre isolados. Precisamos garantir nossa identidade também nas cidades“, diz ela, que foi eleita miss trans Roraima em 2020.
Outro indígena trans inserido no contexto urbano é Ennã Sampaio, 36. Na infância, ele morou com o pai junto aos tabajaras, no Maranhão, etnia da qual descende.
“Ainda não existia um reconhecimento como aldeia. As etnias da região sofreram um forte apagamento histórico”, afirma ele, que se mudou com a família para a capital paulista aos 12 anos.
Ennã iniciou a transição de gênero há quatro anos. “Foi um processo que envolveu toda a família. É a memória afetiva de um ser que vai sumindo, conforme acontecem as mudanças corporais. Isso é difícil para mães e genitores.”

Benício Caeté Silva de Paiva, 45, também teve uma conexão tardia com suas raízes. Cresceu na periferia do Recife e, aos 23 anos, mudou-se para São Paulo em busca de oportunidades.
Na nova cidade, resgatou sua identidade afro-indígena — seus bisavós pertenciam à etnia caeté, de Pernambuco — e passou a adotar o sobrenome como forma de homenagem aos ancestrais. Também se sentiu livre para se expressar usando roupas e cortes de cabelo masculinos, até se reconhecer como homem trans.
Há dez anos, ele comanda um negócio de massas de tapioca saborizadas, com inspiração na culinária tradicional indígena.
“Honro minha ancestralidade porque ela foi um ponto de partida para eu reconhecer quem sou. Sabendo de onde vim, tenho mais força para saber para onde vou”, diz ele.
Com informações da Agência Cenarium