Redação – O termo criado-mudo há algum tempo gera muitas polêmicas e dúvidas sobre o seu uso ou não na língua portuguesa atualmente.
Na última quarta-feira (18), o assunto tomou as redes sociais depois que a cantora Marvilla, do BBB 23, criticou o colega Gabriel durante uma conversa.
“Você falou criado-mudo, né?”, perguntou a cantora. “Então, esse termo não se usa mais, porque é racista. Sei que falou na inocência, mas é melhor eu te falar”, afirmou a cantora. Gabriel pediu desculpas.
Linguistas, pesquisadores e historiadores ouvidos pela CNN se dividem sobre a origem racista do termo usado para identificar o móvel de cabeceira que costuma ser posicionado nos quartos de milhões de brasileiros.
“Pela área da História e, dentro do contexto racial, não temos como afirmar categoricamente que criado-mudo seja uma palavra com motivação racial”, explica à CNN Thiago André, criador e apresentador do podcast História Preta, que conta a memória histórica da população preta no Brasil e no mundo.
O que circula pelas timelines das redes sociais –até então– é que “criado-mudo” seria uma referência a um escravizado que ficava em pé ao lado da cama do seu “dono” durante à noite sem poder falar. Mas é justamente a história por trás da história que divide opiniões.
“Essa história parece uma história que não reflete uma realidade. A língua metaforiza a condição negra na forma que nós olhamos coisas que não são valorizáveis, do ponto de vista politico”, explica Gabriel Nascimento, autor do livro “Racismo Linguistico: os subterrâneos da linguagem e do racismo”.
Nascimento exemplifica com outras expressões, como “mercado negro” e o “lado negro da coisa”, por exemplo, que são usadas como forma de fazer correlação com situações que não são valorizadas.
“Esses usos servem para entender que a língua metaforiza as condições sociais, raciais, politicas. Isso é mais importante do que alimentar uma historia que nós não sabemos qual é a fonte”, completa.
Para o linguista, a polêmica em torno dos termos é interessante porque levanta a discussão sobre o regime escravocrata em nossa língua.
“Mais do que dizer se esse termo é racista ou não é falar que o termo tem ligação com o racismo estrutural da sociedade brasileira”.
O mestre em história Guilherme Oliveira acredita no contexto racista do termo e diz que isso reflete as heranças do passado escravocrata do país.
“Reproduzir essa palavra na atualidade é uma expressão racista porque faz parte do processo que desumanizou pessoas negras. Hoje, se busca trazer novas perspectivas que ressignifiquem as expressões racistas que não perpetuem o comportamento da atualidade.”
O historiador complementa: “A nossa sociedade da atualidade ainda tem uma grande herança escravocrata. Temos que romper isso para ter uma sociedade antiracista”.
Tradução do termo em inglês
“A gente precisa percorrer um caminho para reconstruir o passado. A gente tenta reconstruir o passado com os vestígios que ele nos deixa. Porém, na época da escravidão, não tem indícios de que criado-mudo era utilizado com essa finalidade”, explica Thiago, que recorreu às pesquisas históricas para entender mais sobre a origem da palavra.
Com base na etimologia, acredita-se ainda que o termo criado-mudo seja uma tradução literal do inglês “dumbwaiter” e teria sido uma tradução literal para a língua portuguesa, mas que, na época da hegemonia britânica, teria feito correlação aos moveis de elevador para subir e descer talheres.
O mestre em línguistica pela UnB Gabriel Nascimento também acredita na analogia com a palavra em inglês.
“O fato de metaforizar coisas com pessoas não vem do Brasil. O termo criado ganhou conotação forte na mudança no período escravocrata, com o uso da palavra pra se referir a trabalhadores de casa, da nobreza”, explica.
“Em livros de Machado de Assis, pode-se ver o uso exacerbado da palavra ‘criado’ para trabalhadores e não escravos pela elite oitocentista. Seria alguém que fazia um trabalho pegando coisas, abrindo portas… era chamado de criado”, completa.
Ainda segundo Thiago André, com base em uma busca no Dicionário da Língua Portuguesa de 1890, o móvel usado para quarto se chamava “donzela” e não existe essa palavra no dicionário do século 19.
Independentemente da motivação racial do uso do termo, Thiago André avalia a discussão gerada sobre o termo de maneira bem positiva e construtiva.
“É positivo que as pessoas queiram se informar mais. As pessoas negras estão buscando mais ferramentas pra ler esse mundo racista que nos rodeia e levar o letramento para as pessoas brancas”.
Ele destaca também que as hierarquias raciais foram criadas pelos brancos e não pelos pretos ou indígenas.
“O papel que as pessoas cumprem ao levar o letramento para as pessoas brancas é de suma importância. É bom trocar ideias, contribuir, fazer pequenas correções.”
Thiago reforça ainda que, “mesmo não tendo comprovação histórica do uso racial do termo, vale destacar que a ideia não é desmentir os horrores da escravidão e sim o papel é contribuir para que o debate ganhe corpo”.
“Se hoje temos essa sociedade desigual que ainda nega a população negra por acessos a espaços, ainda é reflexo de uma sociedade que reproduz o racismo estrutural com uso de expressões e palavras com o histórico escravocrata da nossa sociedade”, completa o historiador Guilherme Oliveira.
Com informações da CNN Brasil