
Redação – O governo de Donald Trump ameaça cortar fundos repassados aos museus do Instituto Smithsonian, uma das maiores instituições de pesquisa do mundo, por motivos ideológicos.
O instituto, com 175 anos de história, concentra 21 museus e um zoológico, mas o foco do debate seriam três dos seus museus: o Museu de História e Cultura Africana e Americana, o Museu Nacional de Arte Americana e o recente Museu de História das Mulheres Americanas, criado em 2020.
Em decreto publicado no dia 27 de março, o presidente Trump afirmou ser necessário “restaurar a verdade e a sanidade na história americana, revitalizando instituições culturais e revertendo a disseminação de ideologias divisivas” e que houve, na última década, um “esforço concentrado para reescrever a história americana e adotar uma ideologia sem base factual“.
Como ordem, Trump afirma que o Smithsonian deve trabalhar para impedir futuros financiamentos “de exposições ou programas que degradem valores americanos compartilhados, dividam os americanos por raça ou promovam ideologias inconsistentes com a lei federal“.
O memorando diz que cabe ao Smithsonian “despertar a imaginação das crianças, celebrar a história e a engenhosidade americana, e servir como símbolo para o mundo da grandeza americana“.
No documento, Trump lembra que o seu vice-presidente, J. D. Vance, é membro do Conselho de Regentes do Smithsonian e que este vai trabalhar para “eliminar as ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas“.
Além disso, afirma que o vice, junto com líderes do Congresso, deverá nomear membros do conselho “que estejam comprometidos em promover a celebração do extraordinário patrimônio e progresso americanos“.
O Instituto Smithsonian tem verba anual de aproximadamente US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5,8 bilhões) e 62% de seu orçamento vem do governo federal, principalmente em pagamentos feitos pelo Congresso americano. São 6.300 funcionários federais empregados em seus centros, que juntos somam um acervo de mais de 157 milhões de itens, incluindo espécimes científicos, obras de arte, artefatos arqueológicos e etnográficos e demais objetos de relevância histórica, científica e cultural.
Poucos dias após o decreto, o diretor do Museu da História e Cultura Africana e Americana (NMAAHC, na sigla em inglês), Kevin Young, pediu demissão do cargo. Um porta-voz não nomeado do museu confirmou a resignação à Folha.
O motivo, segundo uma reportagem do The Washington Post, não foi relacionado ao decreto do presidente, mas questionamentos foram levantados sobre as razões para sua saída, que estava desde o dia 14 de março em “licença permanente“. Young é também poeta e editor de poesia da revista The New Yorker.
Pesquisadores e associações de historiadores se posicionaram contra o que chamam de censura. Uma carta conjunta, assinada por mais de 31 organizações e entidades de educação, afirma que o decreto da Casa Branca “deturpa o trabalho dos museus e o envolvimento público com suas coleções e exposições e também interpreta de forma errada a natureza do trabalho histórico”.
“Historiadores exploram o passado para entender como nossa nação evoluiu. Nós nos baseamos em uma ampla gama de fontes, o que nos ajuda a entender a história de diferentes ângulos de visão. Nosso objetivo não é nem a crítica nem a celebração; é aumentar nosso conhecimento sobre o passado de maneiras que possam ajudar os americanos a moldar o futuro”, diz a carta.
Outra associação que se manifestou foi a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, na Alemanha, dizendo que o memorando refletia um ataque “mais amplo de Trump à liberdade de expressão e intelectual”.
“Após o ataque à liberdade acadêmica, o presidente americano agora está atacando os museus independentes. Em sociedades livres, nos engajamos no discurso, negociamos as coisas, mas não permitimos que decretos determinem o que é pensado e mostrado”, disse a fundação.
Os franceses Jean-Loïc Le Quellec, antropólogo, pré-historiador e pesquisador emérito do CNRS (órgão de pesquisa francês), e Nicolas Teyssandier, arqueólogo e diretor de pesquisa no CNRS, também assinaram um artigo no jornal Le Monde criticando o decreto de Trump e o que eles chamam de “um novo ataque contra a diversidade e a inclusão cultural“.
Os cientistas reforçam que tais incursões estão inseridas na “lógica da ofensiva ultraconservadora e reacionária do presidente“, e que o Smithsonian tem um papel histórico na produção do consenso científico atual sobre a história do homem americano.
À Folha, Le Quellec menciona esforços consideráveis feitos na última década em estudos sobre história levando em conta povos indígenas e minorias que incluíram representantes atuais destes grupos.
Segundo o historiador, uma das contribuições do Smithsonian no passado recente foi justamente tornar acessível ao grande público os resultados de pesquisas e reflexões atuais nessa área.
“A história do povoamento da América é objeto de inúmeros trabalhos, conduzidos por especialistas de diversas disciplinas, como linguística, genética, mitologia, etc. É um mundo de uma riqueza muito grande, mas também de profunda complexidade e em pleno desenvolvimento, e Trump, com sua ordem, pede para ‘dar as costas’ a tal movimento. Mas, ao contrário do que estipula o título de seu decreto executivo, a verdade nunca é alcançada por decreto“, afirma.
Teyssandier, que também é professor na Universidade Toulose-Jean Jaurés, também cita a complexidade da história no continente americano e diz que, “para Trump e seus seguidores, que representam a primazia da ‘América branca’, essa ideia [de múltiplos povoamentos] é insuportável“.
“Eles não se importam com a história e querem apenas uma coisa: construir um relato nacional que lhes garanta uma posição dominante. A diversidade cultural é, portanto, apagada, eliminada e muitas vezes vista como um ataque à sua supremacia“, disse.
A reportagem solicitou mais informações em relação ao decreto do presidente ao Smithsonian e qual é o impacto da medida à instituição, mas não obteve resposta.