Nesta quinta-feira, 3, no Brasil, é celebrado o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, uma data que convida à reflexão sobre as desigualdades históricas enfrentadas pela população negra no País. Em Manaus, essa luta se reflete em um rosto: o de Marly Paixão, trancista, psicóloga e referência na valorização da identidade negra na Amazônia.
Nascida na periferia de São Paulo, Marly chegou a Manaus aos 14 anos. Na capital amazonense, casou-se, teve duas filhas biológicas — Keverly Paixão e Jeinnyliss Paixão — e outros 18 filhos do coração. E foi junto à família que descobriu sua vocação, uma missão que transformaria sua vida e a de muitos outros, mais tarde tornando-se referência nas suas duas áreas.

Foi em 1985 que Marly decidiu não mais negar sua identidade após sofrer um corte químico, ao tentar alisar o cabelo para o próprio casamento. Com lã, coragem e lembranças da prima trancista que conheceu em São Paulo, passou três dias trancada no banheiro aprendendo a trançar sozinha. Ali, mesmo sem saber, surgiu a faísca que se tornaria o primeiro salão de tranças afro do Amazonas, hoje comandado pelas filhas.
“Ninguém me via. Eu ficava trançando, trançando. Quando era de madrugada eu ia dormir e voltava de novo no outro dia, trançando o cabelo. Gastei vários novelos de lã fazendo as tranças. E eu falei assim: ‘É isso, essa sou eu’. Naquele dia eu me reconheci. Eu já devia ter uns 23, 24 anos. E aí eu comecei a me apaixonar por aquilo e falei ‘É isso que eu quero’“, relembra Marly Paixão.
As tranças no cabelo foram um escudo de proteção para Marly, assim como um cartão de visita. Andando nas ruas da capital amazonense, ela era abordada por outras mulheres, negras, curiosas e interessadas naquela arte. A partir de então, Marly trançava os cabelos das filhas e de várias mulheres que a procuravam, sem cobrar nada pelos serviços.
Foi o marido que a fez ver uma fonte de renda nas tranças. E ali, no primeiro salão afro de Manaus, as clientes compartilhavam com a trancista as lutas enfrentadas da porta para fora do estabelecimento, como chefes que as mandavam retirar as tranças, famílias que não as aceitavam e esposas que dormiam no salão para não mostrar aos maridos seus cabelos “reais“.
Com o tempo, essa escuta atenta virou missão. Movida pela dor das crianças abandonadas que conheceu em ações sociais e pela vivência dessas mulheres, Marly decidiu estudar psicologia já na vida adulta. A formação só fortaleceu sua atuação, pois passou a liderar projetos sociais — como a Associação Brasileira Acolhe-Dor — e oferecer atendimento psicológico a minorias, especialmente à população negra, que, ela observa, ainda enfrenta resistência.
“A mulher preta ainda acha que ela precisa vencer tudo que ela passa sozinha. Muitas vezes não busca a psicologia. A maioria dos meus clientes são brancos, não são pretos, porque as pessoas pretas acham que é mimimi tudo que elas sofrem, então precisam sofrer sozinhas. Então, eu tenho poucos pacientes pretos, mas eu ainda luto por essa causa. Projetos sociais que possam atender pessoas pretas e minorias na sua realidade“, pontua ela.

Luta
Para Marly, apesar dos avanços já alcançados na luta contra a discriminação racial, ainda há muito a ser feito. O primeiro passo, segundo ela, é conseguir falar abertamente sobre racismo que, no Brasil, ainda acontece de forma velada muitas vezes.
“As pessoas falam que isso não existe, mas na nossa pele isso grita. Eu falei para o meu marido um dia desses que eu achei que eu era tão bem resolvida e eu fui fazer uma palestra numa faculdade, quando eu entrei eu vi algo que nunca mais tinha visto e que me remeteu à mesma dor da criança de quando faziam comigo. Eu passei e um estudante veio na minha direção, chegou perto de mim e falou ‘que susto’. Na hora eu travei e me veio a memória de quantas vezes fizeram isso comigo na infância“, relembrou.
A psicóloga é taxativa ao afirmar que é preciso união e compartilhamento de experiências para quem vive o racismo na pele ter coragem de pedir ajuda. “Eu acredito que essas pessoas precisam se unir, procurar pessoas que falam também sobre isso, procurar pessoas iguais. Porque eu lembro que uma paciente uma vez falou assim, eu deixei de ser atendida, eu deixei de entender que a psicologia era importante realmente para a minha vida, quando a minha psicóloga falou assim, ‘ah, mas isso é bobagem, isso não é assim’. Aí eu perguntei se ela [a psicológa] era preta, e ela falou que não. É isso“, concluiu.

Discriminação racial
Dados de uma pesquisa apoiada pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR), e divulgada no mês passado, mostram que de cada 100 pessoas pretas, 84 relatam já ter sofrido discriminação racial. Para chegar aos dados, os pesquisadores aplicaram questionários de escala de discriminação cotidiana.
Os entrevistados responderam perguntas como:
- Sou tratado com menos gentileza que outras pessoas
- Sou tratado com menos respeito que outras pessoas
- Recebo um atendimento pior que outras pessoas em restaurantes e lojas
- Agem como se tivessem medo de mim
- Sou ameaçado ou assediado
- Sou seguido em lojas
A análise respostas mostrou que pouco mais da metade da população preta (51,2%) relatou ser tratada com menos gentileza. Entre os pardos, esse patamar é de 44,9%. Já na população branca, 13,9%. O levantamento conduzido pelas organizações da sociedade civil Vital Strategies Brasil e Umane coletou informações, pela internet, de 2.458 pessoas entre agosto e setembro de 2024.
Com informações da Agência Cenarium