‘Termômetro da natureza’: onça-pintada sobrevive em fragmentos de floresta e está em situação vulnerável

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Manaus/AM – A riqueza biológica do Brasil tem o brilho do ouro. Está nos olhos dourados da onça-pintada (Panthera onca), o maior felino das Américas e símbolo nacional da conservação da biodiversidade. Não se trata de uma abstração. A onça materializa o equilíbrio dos biomas. É um termômetro da natureza. Onde há onça, há vida em florestas, campos, pantanais e caatingas. E como não existe saúde humana sem saúde do ambiente, a onça importa até para quem vive longe dela, alertam cientistas.

Maior carnívoro do Brasil, a onça-pintada está no topo da cadeia alimentar e, com isso, é peça-chave no equilíbrio das florestas que produzem água e regulam o clima do país. “Onça, elas também sabem muita coisa. Tem coisas que ela vê, a gente não, não pode. Ih! Tanta coisa…”, escreveu Guimarães Rosa em “Meu tio o Iauaretê” (1969). Rosa, o grande cronista dos sertões do Brasil, emanava sabedoria. É a pintada que garante o equilíbrio a população de bichos que, por sua vez, são essenciais para as plantas.

“Uma floresta sem onça é uma floresta sem ordem, empobrecida e vazia”, afirma Lucas Gonçalves, pesquisador do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA).

Um dia o Brasil todo foi Jaguaretama, a terra das onças, composição do tupi “yaguar” (onça) e “retama” (pátria).

Caçada, perseguida e expulsa de casa, a onça-pintada está ameaçada de extinção, mas ainda resiste.

Ela é classificada como vulnerável na Amazônia e no Pantanal, biomas onde ainda se encontra em maior número. Está em perigo no Cerrado. E criticamente ameaçada de extinção na Mata Atlântica e na Caatinga. Dos Pampas já desapareceu há mais de um século.

Veterano em trabalhos de campo sobre a fauna brasileira, Gonçalves destaca que não existe uma estimativa populacional confiável das onças-pintadas no Brasil. Os dados mais precisos são dos biomas mais devastados, a Mata Atlântica e a Caatinga, onde populações fragmentadas são mais fáceis de monitorar.

Calcula-se que existam entre 250 e 300 onças na Mata Atlântica, em populações vivendo em fragmentos isolados de floresta. Na Caatinga, a situação é ainda pior: não restam mais do que 150 animais, concentrados nos últimos resquícios das matas, basicamente no Boqueirão da Onça (Bahia) e nas serras da Capivara e das Confusões, ambas localizadas no Piauí.

Considerado um dos maiores especialistas em onças-pintadas do país, Rogério Cunha de Paula frisa que a urgência da conservação está atualmente na Mata Atlântica e na Caatinga.

“A onça depende das matas e as matas precisam da onça. O Brasil é a terra da onça e ela precisa ser valorizada. Ela pertence a todos nós”, destaca Cunha de Paula, analista do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap-ICMBio) e um dos autores do livro “Panthera onca — À sombra das florestas” (com Adriano Gambarini, Laís Duarte, Mario Haberfeld e Rogério Cunha de Paula, lançado pela Avisbrasilis Editora).

A onça-pintada representada pela imaginação do artista Denilson Baniwa — Foto: Denilson Baniwa
A onça-pintada representada pela imaginação do artista Denilson Baniwa (Denilson Baniwa)

A situação preocupa, pois estima-se que o Brasil abrigue dois terços das onças-pintadas das Américas, afirma Carlos Durigan, diretor da World Conservation Society (WCS-Brasil), ONG que mantém trabalhos de pesquisa e conservação desses animais nas Américas.

“A onça é o melhor indicador de saúde dos biomas. Ela materializa o equilíbrio e deveria ser protegida e reverenciada como um símbolo vivo”, acrescenta Durigan.

Rogério Cunha de Paula observa que, junto com a perda de habitat, a caça é a grande ameaça à sobrevivência da espécie hoje.

Onça é troféu de caçadores

O perigo de a caça levar as onças que restaram à extinção é consenso entre os especialistas. Não se trata de subsistência. A onça não é fonte de alimento. É troféu para caçadores esportivos, a despeito da proibição legal no país desde 1967.

Também se investiga, sobretudo na Amazônia, a matança de onças para abastecer o mercado de medicina tradicional da China. Pó de presas de onça é usado para o substituir o de tigre asiático, proibido na China.

Durigan observa que é preciso haver políticas públicas para a preservação da onça e de seu habitat.

“O Brasil tem capacidade científica. Mas falta ordenamento da ocupação do território e proteção das terras públicas e das unidades de conservação. A onça também é vítima do desmatamento e da violência que fomenta a caça”, afirma.

É incerto o número de onças nos biomas onde ocorrem com maior frequência. No Pantanal, estima-se em cerca de 5 mil. Já na Amazônia, um cálculo grosseiro indica o dobro, 10 mil.

Na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, o foco é proteger as populações de pintadas dos caçadores e da perda de habitat devido ao desmatamento. Já na Mata Atlântica e na Caatinga é preciso mais do que isso.

Cunha de Paula salienta que, além da proteção das populações remanescentes, é fundamental conectar fragmentos de mata, para que a onça possa aumentar sua população e evitar a perda de diversidade genética, que também pode condenar a espécie.

Lares fragmentados

O pesquisador, que participou do Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Grandes Felinos (2018-2023), explica ser essencial criar caminhos da onça. Conectar as populações que ainda existem.

Essas áreas de ligação estão mapeadas, e a mais significativa na Mata Atlântica é a do Corredor Verde, que inclui o Parque Nacional do Iguaçu e trechos contíguos no Brasil e na Argentina. Ali está pelo menos um terço da população de pintadas da Mata Atlântica.

Outras populações importantes no bioma estão nas serras da Bocaina e da Mantiqueira, em São Paulo; e no Parque Estadual do Rio Doce (Minas Gerais). Também fundamental, frisa Cunha de Paula, é aumentar a população de áreas onde elas já existem. Há projetos nesse sentido no norte do Espírito Santo, onde onças nascidas em cativeiro poderiam ser incorporadas à pequena população local de pintadas.

Reintroduzir as pintadas de onde desapareceram é bem mais difícil e só será possível se forem criadas condições. Na Bocaina fluminense, por exemplo, se suspeita que existam indivíduos isolados, mas isso nunca foi comprovado.

“É preciso primeiro acabar com a caça e ter presas para a onça se alimentar. Antes da pintada, é necessário trazer de volta a anta, o porco do mato, o veado e a paca”, acrescenta Cunha de Paula.

“Sei andar muito, demais, andar ligeiro, sei pisar do jeito que a gente não cansa, pé direitinho pra diante, eu caminho a noite inteira”, diz um trecho de “Meu tio o Iauaretê”. Existem onças errantes, indivíduos que se aventuram a conquistar novos territórios e acabam conseguindo só problemas. “Sou fazendeiro não, sou morador… Eh, também não sou morador não. Eu — toda a parte. Tou aqui, quando eu quero eu mudo”, nas palavras de Rosa.

“O território do homem é perigoso para a onça. Quase sempre, ela acaba morrendo, seja a tiros ou atropelada”, lamenta o biólogo Izar Aximoff, especialista em felinos silvestres e que investiga ocorrências de pintadas errantes.

Raras aparições de onça

No estado do Rio, a última onça-pintada foi morta em Petrópolis, em 1977. Era uma rara onça negra. E se foi a tiros. Aximoff frisa que esses animais precisam ser monitorados, resgatados e levados para florestas seguras.

Especula-se que uma pintada tenha aparecido há alguns meses em Valença, no Rio de Janeiro. Por ora, apenas um história difícil de comprovar. Pois ela, não sem motivo, é considerada um espírito das matas — “é custoso homem enxergar que tem onça”, lembrava Guimarães Rosa.

“As onças são patrimônios naturais da nossa sociedade, não podem ser negligenciadas. Mas faltam planos de ação e mobilização de autoridades locais”, critica Aximoff.

E a onça viva vale muito mais do que morta, mostraram estudos. No Pantanal, uma pesquisa coordenada por Fernando Tortato, da ONG Panthera, revelou que a venda de pacotes turísticos para a observação de onças alcançou R$ 22 milhões em 2017. Já os prejuízos causados pelos felinos com a predação de gado não passaram dos R$ 400 mil.

Símbolo de encantamento

Mas tudo isso ainda é pouco para salvar a onça. É preciso encantamento, afirma Yara Barros, coordenadora do Projeto Onças do Iguaçu.

“É a magia natural em torno das onças que abre caminho para o conhecimento. E o conhecimento prova à sociedade, em especial às comunidades de lugares onde ainda existem onças, que é possível a convivência sem conflitos”, diz Barros.

A pintada muitas vezes é condenada à morte por crimes que não cometeu. De cada cem cabeças de gado mortas no Brasil, apenas duas são predadas por onças, sendo o atolamento na lama e doenças infecciosas as principais causas de mortalidade do rebanho.

“A onça é vítima da falta de conhecimento. O principal objetivo do projeto é justamente promover a coexistência entre onças e pessoas”, acrescenta Barros.

No Paraná, a equipe do Onças do Iguaçu trabalha com educação ambiental, ensina práticas para evitar conflitos e promove projetos de empreendedorismo por meio da imagem da onça. Já fomentou, por exemplo, o surgimento de pousada e fábrica de queijo com a marca da onça.

Poucos animais possuem marcas individuais tão expressivas quanto as onças-pintadas. Quando uma onça morre, se extingue uma beleza exclusiva. “Independentemente de serem pretas, amarelo-claras, escuras, ocres ou pálidas, cada onça possui em sua composição de manchas, rosetas, pintas uma identidade única. Não existe uma roseta igual em nenhuma onça-pintada do mundo. Como nossa impressão digital, esta característica é sua marca individual, estampada em seu corpo, em sua face”, ensina o livro “Panthera onca”.

“Nenhum animal brasileiro exerce tamanho fascínio, uma sensação real de encantamento. Mas a onça só quer ser onça, criar seus filhotes. O Brasil será menor sem esses olhos dourados que iluminam as matas”, enaltece Barros.

Com informações da Agência Cenarium

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